terça-feira, 2 de março de 2010

Uma geografia de "A Cidade e as Serras"

É notável a possibilidade de se enxergar a geografia em variadas formas e conteúdos, a literatura que sempre me pareceu uma forma de filosofia, aliás Platão converteu as duas coisas em uma, mas também a literatura é uma forma de visualizar geografias, o livro do grande Eça de Queiroz: A cidades e as Serras é mais que uma dicotomia entre dois mundos, o campo e a cidade, o livro transmite sensações, impressões e pausas para se pensar em como existimos nas geografias, em nossa vitalidade e nossas realizações que se fazem obrigatoriamente no espaço geográfico, viver bem é estar cercado ou imerso em quê? Abaixo segue um trecho de uma reflexão que faço dessa obra importante no contexto do realismo literário de Eça de Queiroz.

Mas o encanto não é duradouro, assim a visão burguesa e otimista sobre o progresso humano de Jacinto vai sendo corroído diante da rudeza das operações e ações que se desdobram na metrópole e que são capazes de extrair a vitalidade humana através dos afazeres quase compulsórios que brotam a cada movimento. E assim que Zé Fernandes seu amigo, observa um Jacinto diariamente atolado por obrigações e assistências a varias sociedades e instituições, nas quais mal está profundamente envolvido, mas cujo superficial envolvimento lhe dá a sensação de pertencer a uma élite superior destinada a engrandecer a ideia de uma civilização do progresso, ao mesmo tempo, aquele Jacinto jactancioso pelas modernidades científicas e mecânicas do seu tempo se vê gradualmente vencido pelas as atribulações que lhe custa essas modernidades e de toda parafernália mecânica instalada em sua casa devido rotineiras quebras e manutenções, é nesse cenário que Zé Fernandes observa “com espanto (mesmo com dor, porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar de uma crença) descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos boulevards, que o denso formigueiro humano sobre o asfalto, e a torrente sombria dos trens sobre o macadame, afligiam o meu amigo pela brutalidade de sua pressa, do seu egoísmo, e do seu estridor” .

O Jacinto agora é incomodado pela exaustão da metrópole; com seus congestionamentos, excesso de gentes e as idas e vindas dos constantes compromissos que exercem aquele esgotamento vital que atinge não apenas o Jacinto de Eça, mas milhões de Jacintos que vivem numa metrópole, imersos e agrilhoados pelas demandas e desafios que os sufocam mais que proporcionam deleite e satisfação. Os fluxos, as movimentações, os barulhos dissonantes, o apressamento que não cessa e todo o ritmo da metrópole vai afligindo Jacinto, o estresse da cidade, o sentimento de impotência e angustia diante de um espaço geográfico marcado pela esmagadora densidade humana e material, pelo emaranhado de fluxos e ritmos e pela capacidade massificadora de comportamentos e ações. Desse modo, a cidade-metropole de A Cidades e as Serras ecoa nas cidades-metropoles da atualidade, mas sua visão não é otimista, a cidade não é a geografia dos tempos lentos e tranqüilidade, e a geografia da constante inovação, dos tempos rápidos, das perturbações e não raro do aniquilamento de muitos homens e mulheres.