domingo, 27 de maio de 2012

A brasilidade nos campinhos de futebol da periferia






O artista fotógrafo alemão Joachim Schmid disse numa entrevista ao jornal "El país" que a fotografia é como pesca de arraste, já que às vezes pescam-se coisas além do que se pretendia pescar é de fato uma interessante observação, pela ideia de que a fotografia sempre revela algo diferente toda vez que a miramos, e ela nos surpreende muitas vezes, hoje não penso que a fotografia congele o tempo, penso ao contrário disso, ela na verdade descongela o tempo, sempre damos ou adicionamos outros significados a ela, assim o tempo toma outros sentidos.


Porem tão interessante quanto essa observação foi que a matéria do jornal tinha como objetivo ilustrar uma série de fotos cujo tema era o futebol, mas precisamente os campos de várzeas. O que chamou atenção do artista quando certa vez veio ao Brasil foi uma singularidade brasileira, quanto a irregularidade dos campos de futebol de várzea, construídos seguindo as condições urbanas do lugar, ou melhor ainda surgindo entre pedaços de terrenos em meio à caoticidade espacial, como campos em declive de morros e favelas, linhas e traves sem ângulos retos, campos em meia a uma selva de prédios, em terrenos baldios, ou seja, cada campo é único em sua geografia de entorno. Uma característica segundo o artista somente encontrada no Brasil no conjunto dos países sul-americanos. Há certo contraste disso com aquela imagem do futebol, verdadeiro objeto de culto e adoração, assumidos como paixão nacional.


Neste caso o lugar e berço da “pátria de chuteiras” é na realidade ainda visto ou confundido com marginalidade e informalidade, espécie de tabu, em que jogar bola, e seu prazer não sejam dignos de atenção séria, uma pratica daqueles que não tem o que fazer, assim o futebol brasileiro e seus fieis praticantes são jogados a sua própria sorte, a população que se ajeite em fazer seu campo de futebol, deixe que a criançada se vire em jogar sua bola. Ainda acho que tal prática seja vista sinteticamente como pura vagabundagem, o inverso do futebol profissional, como se este não tivesse conexão com aquele. Em minha cidade vejo quadra de tênis em meio a bairros nobres, até algumas quadras poliesportivas, mas a preocupação em construir “campinhos de futebol”, aquele onde se dá à espontânea e quase visceral excelência esportiva brasileira, bem, esse é algo que brota da própria comunidade, a mercê do acaso e da boa vontade de alguns boleiros de fim de semana, ou daquela molecada disposta a jogar bola naquele terreno estreito e irregular que sobrou em algum canto do bairro ou da favela.


Mas acho que num exame mais antropológico, isso possa ser um dos exemplos da vergonha de nossa própria cultura, vergonha quanto sabemos que sempre estamos a nos comparar com o velho continente, onde lá seus praticantes de futebol, são mostrados em belos e arrumados campos de futebol, todos gramados e todos os jogadores com jogos de camisa.

Acho que aqui que devo melhor esclarecer a importância desse assunto, eu mesmo e assim como muitos que tiveram a oportunidade de viver na periferia das cidades, sabe o que são verdadeiramente estes "campinhos" no Brasil. Geralmente de terra batida, ali muitos garotos tornaram-se homens, ali além de chutar a bola e ensaiarmos dribles e “chapéus” nos adversários, brigávamos, mostrávamos o quanto éramos corajosos em enfrentar uma dividida ou suportar ficar numa barreira, divertíamos contando historias ou inventando algumas para se mostrar o tal, ao contrário dos campos europeus ou estadunidenses cujos pais acompanham seus filhos e torcem por eles, onde até há técnicos, aqui não tinha nada disso, nada de torcedor ou meninas pulando e torcendo pelos ídolos do campo, o campinho era lugar da malandragem, pois a malandragem brasileira e na melhor das hipóteses isso, fazer algo para driblar a escassez, fazer do resto do porco uma bela feijoada, e não é a toa dizer que o futebol brasileiro de requinte e raça nasceu aí.


Às vezes ali naquele espaço nos reuníamos após as partidas para planejar algumas aventuras, como atravessar o bairro inimigo, pular a cerca de algum sitio para pegar amoras ou mangas. Campinhos que eram sempre ignorados pelo poder publico, nunca vi a prefeitura cortar o mato em volta ou mesmo arrumar as traves. O campinho era lugar sério, onde pessoal fumava, trazia alguma revista de mulher pelada, também funcionava como esconderijo, para quem “matava aulas na escola” ou queria escapar de casa, todos nós sabíamos que só tinha um lugar para ir, era lá no campinho de terra.


Campinhos que estavam geralmente em terreno particular, mas eram jeitosamente brasileiros, o que quer dizer que era tudo improvisado, as linhas de campo eram feitos por alguém do grupo decidido a formalizar melhor a coisa, então se demarcava com traços rudes e tortuosos com algum pedaço de pau a grande área e claro a linha do meio de campo, bem, as traves do gol eram raras vezes bem pregadas e fixadas, mais raro ainda era ter uma bola dita “oficial” de capotão, claro que não poderia deixar de falar do jogo de camisa, posso dizer que eram bem a nossa moda, para começar, os jogadores eram escolhidos no jokenpô, e dois times surgiam: o time de camisa e o time sem camisa veja só a que ponto a fraternidade chegava, pois o jogador escolhido para o time com camisa, mas não tinha uma camisa (e muitos não tinham mesmo), logo conseguia uma camisa do colega emprestada para formalizar o time, não havia cerimonia sobre quem ia dar ou não uma camisa ao pobre coitado.


Porém às vezes para nosso desgosto e lamentação, o suposto dono do terreno ou a vizinhança desgostosa com a molecada, ou ainda da marginalidade e reputação do campinho quebrava as traves ou metia obstáculos no campinho, aconteceu que certa vez a prefeitura inutilizou um campinho com aquelas grandes manilhas de concreto, até gerou polêmica e saiu no jornal local à revolta da molecada e o assassinato do campinho, até hoje quando visito meu bairro vejo as desprezíveis manilhas.


Perto da minha casa, havia uns três campinhos, cujos nomes eram bem sugestivos e até convenientes geograficamente, me recordo do campinho da "beira-cova" pois eram um campinho bem próximo ao cemitério, também o "campinho do alemão" porque justamente estava próximo de um boteco cujo dono era loiro (aliás no meu tempo qualquer garoto loiro era alemão). Ninguém cuidava do campinho, porém ali a grama e erva daninha não tinham vez, se logo se via o mato ou grama crescer pelas rebarbas tomarem a direção do centro do campo, principalmente na época das chuvas, era só uma questão de tempo, a molecada voltava a jogar e aí a grama e o mato não resistiam, pois fazíamos com os pés de quichute o que uma maquina faria em vários turnos e returnos, era pura terra mesmo, quando chovia voltávamos como bife à milanesa, nesse caso, era puro barro mesmo, era raro alguém não ter bicho de pé, as mães as vezes amolavam com seus famosos mantras “você vai pegar resfriado, sua peste!”, mas aquela molecada era resistente a todo bicho e infecção que se pudesse imaginar.


Claro que não era só divertimento, tinha muita confusão, os mais fortes querendo sempre se impor e intimidar os mais fracos, rodas de briga, não tinha essa de juiz e policial em campo, qualquer problema que surgia no campinho também era resolvido prontamente lá, na base da porrada ou fugindo de objetos atirados pelo time perdedor, sobretudo em campinho do inimigo quando excursionávamos em outro bairro, também tinha os folgados que faziam questão de “mijar” no campo perto da trave só para atrapalhar o adversário e o goleiro. Se você se machucasse em campo e sangrasse por alguma entrada desleal ou mesmo por que caiu em cima de um caco de vidro (e isso era comum, pregos, vidros quebrados e até cobras nas rebarbas do campinho) era tudo natural, qualquer moleque já sabia que tudo estava no "pacote" e sem essa de chorar.


Mas o campinho também não era só futebol, ali era um espaço de vivência mesmo, espontâneo, ali era lugar se soltar pipas, jogar búricas (ou burcas como a maioria falava) , também fazíamos uma espécie de "cross" com as famosas bicicletas "caloi cross ou BMX pantera" até mesmo podia se ver em épocas de festas juninas um pessoal naquele esforço de juntar uns troncos para fazer uma fogueira e esquentar umas batatas-doces no meio da campinho.

Minha geração e outras antes da minha sabem o que estou falando, o campinho de futebol foi mais que um lugar de esporte ou lazer, era tudo isso, mas era uma cultura, com espaço e suas regras. Local de se ver a si e aos outros da sua comunidade, não havia para nós (talvez a rua ainda conservasse essa característica ainda) lugar mais social e comunitário que um campinho de terra encravada em qualquer terreno escondido e descuidado de uma periferia. Foi isso que o artista alemão encontrou em última instancia através de suas fotografias, aquilo que amamos escondidos e nele somos, dizem que o brasileiro não é um grande torcedor entusiasmado de futebol, acho que não somos mesmo, somos é futebolistas e se torcemos e nos imaginando no lugar do jogador em campo, como se estivéssemos lá no campinho de terra, a mais essencial das arenas do futebol brasileiro.




Site da matéria do jornal:
http://ccaa.elpais.com/ccaa/2012/01/18/paisvasco/1326902405_064973.html
e site da mostra das fotos: http://www.athletic-club.net/web/main.asp?aintqui=0&b=1&c=1&d=1000&berria=11558&idi=2

sábado, 26 de maio de 2012

Estética e Geografia

Um pouco devido a algumas leituras teóricas sobre a arte como “A dimensão estética” de Herbert Marcuse, outro tanto pelo caminho que se abre quando se pensa numa ontologia em que a geografia se faz como parte do Ser e outro tanto, porem de forma bem mais prazerosa, simplesmente contemplando a musica, a pintura, a fotografia e outras expressões da arte, venho adquirindo a partir desses caminhos uma concepção de valor e de representação da arte quanto ao papel renovador que ela pode proporcionar na escola e para geografia escolar. Se durante um longo sono pensei a arte como um acessório, um simples deleite intelectual ou um tipo de universo paralelo ao mundo dito real. 

Tenho agora pensamento diverso disso, chego à conclusão que a obra artística é além de seus outros usos, também uma maneira de lidar com a realidade. É decerto uma atividade dessemelhante às ciências sistemáticas, mas é genuinamente uma busca pela descoberta ou redescoberta da realidade. Claro que a arte não aspira à universalidade, mas com ela se envolve, a arte não se preocupa em querer se distanciar sujeito e objeto, ao contrário, com esse par epistêmico se entrelaça, é com certeza um trabalho sistemático, exige pesquisa e geralmente é esgotante para o artista física e intelectualmente. 

É também verdade que as obras artísticas são plasmadas por visões pessoais, às vezes oníricas e sentimentais, mas não se desligam de certa reflexividade com o tempo e espaço que tanto os artistas como suas obras estão inseridos. Por isso, não vejo nenhum contrassenso em afirmar que o artista está dentro de uma geografia e de uma época e, também podem eventualmente expressar de modo estético essas geografias e o tempo de um modo também revelador. Expressar para mim nesse caso equivale ao sentido de se comunicar, entendo que artista através de seu trabalho artístico desenvolve um tipo de comunicação, pois além de querer se comunicar com o mundo, esta talvez antes de tudo, se comunicando consigo e com o outro. Sua obra em muitas ocasiões reflete como se sente perante seu entorno, como percepciona e interioriza sua geografia.

Essas experiências estéticas são públicas no sentido de compenetrar-se no outro, mexe com nossa maneira ver e sentir o real. Seja alterando o que vê (objetividade) quanto tornando visível aquilo que está invisível aos olhos, nesse ponto o psicanalista francês Lacan parece estar certo quando diz que “a arte poderia nomear o que não se deixa ver”, e a obra artística é uma forma de comunicar a realidade do mundo, dos homens e de suas geografias sob uma visibilidade poética, plástica, musical ou em outras diversas formas de expressão estética. 



"Urban Perspective" desenho de Paul Klee de 1928. Tenho admirado o trabalho desse grande pintor e desenhista, primeiro pelas "geografias" que encontro em suas obras e segundo, pela sua própria experiência pessoal, viveu num período conturbado: a Europa das primeiras décadas do século XX, inclusive perseguido pelos nazistas. É considerado um mestre das cores e do desenho. Nesse quadro vejo uma racionalidade cheia de simetrias, porém entrelaçada e densa, coisas próprias do urbano, se pensarmos que tal desenho foi feito em 1928, portanto visualiza a sedimentação de um espaço urbano sem curvas e tortuosidades, feito de linhas, concreto e cores mortas .Um olhar, uma perspectiva do sentido moderno de muitas das grandes cidades e metrópoles do século XX, ou seja, o sentido cúbico de ser urbano.